Nova norma do Conselho Federal de Medicina restringe atuação médica em relação à cannabis. E agora?

O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou recentemente uma nova norma sobre a prescrição de tratamentos medicinais com cannabis.
A Resolução CFM nº 2.324/2022 dispõe que médicos só podem prescrever CBD (e nenhum outro composto da planta) para o tratamento de epilepsia refratária em crianças e adolescentes com Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut; ou para o tratamento do Complexo de Esclerose Tuberosa.
As síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut são encefalopatias progressivas associadas a convulsões de difícil controle. A esclerose tuberosa é uma doença genética rara caracterizada pelo crescimento de tumores benignos em diversos órgãos, como no cérebro, sintomas de epilepsia e atraso no desenvolvimento.
Segundo a resolução, os médicos só podem receitar o canabidiol para estas condições de saúde e apenas nos casos em que não houve bons resultados com tratamentos convencionais.
A norma também diz que fica ”vedada ao médico a prescrição de canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista nesta Resolução, salvo em estudos clínicos autorizados”.
Os profissionais também não podem ”ministrar palestras e cursos sobre o uso do canabidiol e/ou produtos derivados de cannabis fora do ambiente científico, bem como fazer divulgação publicitária”.
Outro ponto trazido pela resolução, entretanto, é que a prescrição do canabidiol para os casos citados pode ser feita por médicos de diversas especialidades, a resolução deixa de restringir a prescrição somente às especialidades de neurologia, neurocirurgia e psiquiatria (como previa a última norma do CFM, de 2014).
A medida tem validade de três anos e é a primeira orientação do CFM em relação à cannabis em oito anos, indo na contramão de todos os avanços em relação ao tema.
A última resolução havia sido publicada em 2014 e era mais genérica. Embora só autorizasse o uso da cannabis para casos de epilepsia, não o restringia a apenas essas três doenças, como agora.
Isto é, a norma de 2014 não era categórica em proibir a prescrição para indicações diferentes das previstas.
A nova norma, recém-publicada, agora diz que isso só pode ocorrer em estudos clínicos autorizados pelo sistema formado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e Conselhos de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP).
Por que?
Segundo o CFM, o plenário do conselho aprovou a nova resolução após revisões científicas sobre as aplicações terapêuticas e a segurança do uso do CBD realizadas entre dezembro de 2020 e agosto de 2022.
Em nota, o Conselho também informou que foram colhidas 300 contribuições por meio de consulta pública aberta para médicos de todo o país.
”Após a avaliação, o CFM concluiu pela existência de resultados positivos da prescrição do CBD em casos de síndromes convulsivas, como Lennox-Gastaut e Dravet, mas resultados negativos em diversas outras situações clínicas”.
Na contramão
A decisão do Conselho acontece em um momento de alta no uso de cannabis para fins medicinais no país.
A própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já vem facilitando o processo para pacientes terem acesso à cannabis para fins medicinais no Brasil, desde 2015, quando permitiu a importação de produtos à base de cannabis com a RDC 17.
Além disso, desde 2019, com a RDC 327, a Agência tem simplificado o processo.
Mas o Conselho Federal de Medicina optou por retroceder.
Já existem diversos estudos que apontam os benefícios terapêuticos da cannabis no tratamento de diferentes condições de saúde.
E médicos, pacientes e suas famílias, no Brasil, confirmam a melhora dos casos clínicos com o uso medicinal da cannabis.
Enquanto outros países avançam regulamentando o uso medicinal e adulto, no Brasil retrocedemos.
Inconstitucional
Ao restringir a atuação dos médicos tanto na prática clínica quanto na difusão de informações sobre os usos médicos dos derivados de cannabis, o medo que existe é essa nova norma ser uma porta para a perseguição de médicos que tratam os seus pacientes com a terapia canabinóide.
”a resolução é inconstitucional, uma vez que atinge diretamente a dignidade da pessoa humana e o direito à saúde, quando ameaça e visa cessar tratamentos com cannabis, que já vêm ocorrendo de maneira eficaz para aliviar as dores e ou sintomas de pacientes no Brasil, por motivos arbitrários, sem justificativas médico-científicas plausíveis.
Na opinião do advogado Ricardo Nemer, membro da Rede Reforma ‘trata-se de um terraplanismo científico e jurídico, pior que ofender a dignidade humana e o direito à saúde, pois existe ainda a prática de um crime. O CFM está cometendo crime de omissão de socorro, Artigo 135 do Código Penal Brasileiro – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa”, escreveram Emílio Figueiredo (advogado brasileiro focado na cannabis e membro da Rede Reforma) e Aquiles Castro Junior (advogado no Brasil e em Portugal e membro do Conselho Científico do Movimento Mães pela Canábis em Portugal).
A Apepi, uma das maiores associações de pacientes que fazem uso da cannabis no Brasil, publicou uma nota afirmando:
“Somos pressionados desde 2015 pelo CFM, mas graças à médicos corajosos nós avançamos e não podemos nos intimidar. É sobre vidas, qualidade de vida e esperança. O CFM nunca cassou a carteira de nenhum médico porque sabe que essas resoluções são inconstitucionais. Na hierarquia da lei, vem sempre em primeiro lugar a Constituição Federal, que garante no art. 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Empresários do setor também se posicionaram:
“Como ficam milhares de pacientes que estão sendo beneficiados com essa terapia? Se não pode, como a Secretaria da Saúde, o Ministério da Saúde e o SUS compram medicamentos com canabidiol para várias patologias, inclusive para autismo? É uma incongruência“, afirma Caroline Heinz, fundadora e CEO da Sphera Joy e FlowerMed.
Diversos ativistas, organizações, associações, advogados, empresas e partidos políticos (como o PSOL) se posicionaram de forma contrária à resolução e pediram a revogação.
A Sociedade Brasileira de Estudos em Cannabis Sativa (SBEC) criou um abaixo-assinado contra a norma e solicitando a revisão imediata da resolução.
O Ministério Público Federal (MPF) também instaurou procedimento preparatório (PP) para apurar a compatibilidade da Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 2.324/2022, de 11 de outubro de 2022, com o direito social fundamental à saúde, nos termos da Constituição Federal.
O que muda na prática?
A Anvisa informou que vai manter a autorização para os produtos derivados da cannabis independentemente da resolução do CFM. A agência recebeu, no ano passado, 41 mil pedidos de importação de produtos à base de cannabis. Além de autorizar os remédios que são vendidos no Brasil.
Portanto, pacientes que já possuem prescrição médica vão continuar tendo acesso ao tratamento.
Na prática, a resolução atinge mais a atuação dos médicos prescritores de cannabis, principalmente por restringir a difusão de informações por parte destes profissionais.
Mas, os médicos prescritores de cannabis poderão continuar realizando consultas normalmente, apenas tendo mais cautela.
Especialistas apontam que, na realidade, o CFM impõe medidas restritivas para prescrição de cannabis desde 2014, com a Resolução 2.113. Mas isso não impediu que a prescrição de tratamentos à base de cannabis crescesse no Brasil.
Afinal, as resoluções do CFM implicam apenas medidas administrativas ao descumprir a norma. Esses procedimentos costumam ser complexos, portanto, dificilmente são levados adiante com frequência.
Sem contar que os médicos possuem o respaldo da Constituição Federal e de outras medidas do próprio CFM para garantir que eles possam receitar o tratamento adequado para o paciente.
Portanto, enquanto está acontecendo toda essa reação em relação à medida do CFM, médicos terão grande cautela na prescrição e divulgação de informações sobre o uso medicinal, mas a luta continuará e o acesso ao uso medicinal da cannabis (ainda que dificultoso) não vai parar no Brasil.
A expectativa é que a resolução seja suspensa nas próximas semanas.
Fontes: CannaReporter; Folha; G1; Veja.